quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Casca e Miolo I - Entrevistando um Juiz



Explicação preliminar: Transcrevendo novos textos de meu avô, descobri que o artigo "Entrevista com um Delegado" é na verdade o fragmento de uma série mais ampla, chamada "Casca e Miolo".
 Para minha surpresa, descobri que se trata de uma curiosa tentativa de ficção científica sertaneja, em que um autor anônimo usa o mirabolante registrador de consciência para averiguar se aquilo que se diz corresponde àquilo que se pensa. Usando um avião a jato, ele vai de cidade em cidade entrevistando figuras públicas (um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário, um comerciante, um dentista e um vigário) com o objetivo de averiguar o nível moral de nossa gente.
 Como era comum nos textos de meu avô, o objetivo final era transmitir uma mensagem edificante. Neste caso, como se trata de uma crítica social a um Brasil em que a falta de caráter de seus homens públicos em muito prejudicava os interesses coletivos, acho que o tom é bastante apropriado. Diria até que a mensagem continua atual, apesar de nossas instituições certamente terem mudado desde aquela época.  Como o autor conseguiu preservar certa leveza e senso de humor na narrativa, a leitura do texto é rápida e agradável. 
 Pretendo em breve transcrever toda a série. O quadro que aos poucos for se delineando talvez seja uma boa introdução ao que era o interior do Ceará no fim da década de 50 do século passado.






José Siebra de Oliveira, agosto de 1958
(publicado no Periódico da AABB do Crato)

         Acentua-se, dia a dia, entre os homens, a dualidade das expressões do seu interior e do seu exterior.
          Uma minoria mantém uniformes e paralelas as manifestações intrínsecas e extrínsecas de seu "eu".
         Na primeira classe, estão os cordeiros com alma de lobo. Na segunda, os coerentes ou bons, interna e externamente, ou igualmente maus.
           Para análise desta situação, construímos o nosso registrador de consciência, e com ele vamos trabalhar um pouco, sintonizando alguns estados d'alma. Entrevistaremos um juiz, um prefeito, um advogado, um bancário, um comerciante, um dentista e um vigário.
             Ressaltamos, com absoluta sinceridade, que não é intenção nossa atingir ou vulnerar qualquer cidadão vivo ou morto, mas apresentar, com imparcialidade e realismo, o comum das atitudes humanas, de modo particular no Brasil.
          Declaramos, pois, que qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável coincidência.
              Acionemos o nosso avião a jato...
              Tum... um... um... um... um... um... ummmmmmmmmmmmmm...
             Cuidado! Se atingirmos a estratosfera, nos transformaremos em poeira dos espaços... Afinal não estamos preparados para uma viagem à lua.
              Baixemos de mergulho...
               Tchum... um... um... um... ummmmmmmmm...
               Aqui estamos no interior do Nordeste. Uma cidade do sertão.
               Seu nome não interessa. Tudo isto é Brasil, esta enorme panela de baião de dois, esta grande tigela de café de leite, esta imensa lagoa de três sangues, este lago de águas turvas. Onde se mete a mão, a piranha morde. Onde se mergulha, "o jacaré abraça" ou o tubarão devora.
           Vejamos esta praça. Olhem a placa! "Praça da liberdade". Nela está a cadeia pública, a delegacia de polícia e a Chefia da Guarda Municipal.
               Desçamos nesta rua. Vejam! "Rua da Concórdia". Duas mulheres, agarradas pelos cabelos, lutam com ferocidade de loucas.
               Observem aquela legenda do obelisco! "Jardim dos Doutores". Dois burros estão devorando a grama.
               Nossa curiosidade nos leva a falar para um engraxate, sentado à porta do "Bar Novo".
                – Onde o fiscal desta praça?
             O mocinho foi ligeiro com a resposta, sem erguer a cabeça, encolhendo uma perna e metendo a escova no seu caixote...
               – Está trabalhando na fazenda do coronel, o nosso Prefeito. Faz uma semana.
               – E estes burros?
               São do Juiz, mas se entra outro aí leva tiro.
               E o rapaz, estirando o beiço, foi dizendo:
               – Olhem, aí vem ele.
               – O que? Outro burro?
               E numa virada rápida de meia volta, encontramo-nos, cara a cara, com um senhor de esbelto porte, robusto, jovial, cavalheiresco, que ligeiro nos falou:
               – Olá, senhores! São porventura do planeta Marte?
            – Não, cidadão. Apenas turistas. Estamos aqui admirando a sua terra e o seu povo. Com quem temos a honra de falar?
               – Sou o Juiz da cidade... Cavalheiros, não se escandalizem com o nome da nossa pracinha. O povo assim o quis. É que, toda noite, nos reunimos, aqui, eu, o advogado, o médico e o dentista, para um ligeiro "bate-papo".
               Agora, ao trabalho... liguemos o registrador... observemos o que expressa a boca (B) do Juiz e a sua consciência (C).
               Olhem a fita magnética:
               – Sr. Juiz, V.S. deve ser muito preparado. Bem o indica a sua fachada...
             – B: ~ Modéstia à parte, estudei muito. Graças, não tanto à minha inteligência, mas aos meus esforços, sempre consegui, não o primeiro lugar, mas um dos primeiros da turma.
          – C: ~ Sempre passei por pescas, pistolões, presentes aos professores venais, quando os reconhecia como tais, ou, algumas vezes, à amante de um deles, a qual agiu também no caso.
               – Então, facilmente chegou V.S. a ser Juiz?
               – B: ~ Sim... É claro... Os meus méritos conquistaram o Tribunal.
               – C: ~ Fui nomeado por força de uma intervenção do Governador do Estado, eleito pelo NPC, o nosso partido.
               – Como Juiz, V.S. tem demonstrado preferências partidárias?
               – B: ~ Nunca. Os meus atos são sempre fundamentados na razão e nas leis naturais, na legislação vigente, e guiados pelos princípios de equidade e justiça.
               – C: ~ Sempre defendo, o quanto posso, o interesse do meu partido. Fora disto, somente quando a vantagem é grande... Se o criminoso levado ao Tribunal do Júri o é pelo meu partido, escolho os jurados de conformidade com as circunstâncias, ou para soltá-lo ou para condená-lo, sem vistas ao crime. Na época das eleições, ando por baixo d'água. Meus esforços jamais se perderam em defesa dos meus interesses partidários.
               – Queremos crer, Sr. Juiz, que, em nosso Brasil, todos os juízes são, como V.S., sinceros, justos, esclarecidos.
               – B: ~ Nem todos. Há exceções. Os venais e os politiqueiros.
              – C: ~ A maioria dos juízes, no Brasil, parece realmente ser de mim diferente. São honestos. Grande parte, entretanto, é do meu quilate. Onde a causa? Ignoro.
               – V.S., como estamos observando, tinha realmente vocação para as funções que exerce...
               – B: - Sim... Sim... Sempre foi o meu maior desejo e grande vontade do meu pai que eu abraçasse a advocacia e viesse a ser o que hoje sou.
          C: ~ A minha vontade era seguir agronomia. Tinha loucura pelo cultivo e bom aproveitamento dos campos. Sonhava com um Brasil próspero, produzindo muito. Infelizmente o meio corrompeu o meu idealismo. Cheguei depois a me convencer de que, no Nordeste, agrônomo não encontra trabalho, salvo quando vai cultivar o próprio terreno, ou quando consegue colocação na chefia do Serviço Florestal ou de algum Campo de Fruticultura do Governo. Foi assim que, contra a minha aspiração, estudei advocacia, pois são mais abundantes os campos de exploração neste sentido, quando se tem alguma inteligência.
               – Estamos muito gratos, Sr. Juiz. O nosso abraço, e até...
          E agora voltemos em nosso avião, pensando neste imenso Brasil, tão cheio destes desencontros, destas situações que geram o crime e a infelicidade, frutos de uma educação mal orientada e de um Governo desinteressado dos problemas fundamentais da nacionalidade.
               Assim é que, desta forma, vemos homens voando como as andorinhas, que pousam nos pináculos dos grandes edifícios e nas copas das árvores, quando, pelo que intrinsecamente são, deviam andar rasteiros como as emas e subir apenas à altura do voo das galinhas.

terça-feira, 2 de setembro de 2014

Bonança e Tormenta



Comentário preliminar: Numa época de tão grande esculhambação como a nossa, o moralismo deste texto (escrito em 1965, um ano após o golpe) pode parecer não apenas datado, mas também piegas. Ainda assim, acho que algo sobreviveu. Seu autor provavelmente o escreveu como uma peça edificante. Eu o leio como um ingênuo - mas engenhoso - conto de horror católico.





Bonança e Tormenta



José Siebra de Oliveira, março de 1965 (Publicado no periódico da AABB do Crato)

            Do alpendre daquela bonita casa alcandorada, emoldurada por vegetação paradisíaca, sentados, eles mergulhavam a vista nas agitadas ondas do oceano que se arrojava contra a base granítica da serra abrupta.
            Todas as reentrâncias da soberba cordilheira, com a resistência milenar dos seus paredões, aniquilavam a investida das águas.
            Observavam, depois, no lado sul o automóvel dos seus pais, o qual sumia-se nas sinuosidades da estrada, estirando-se por serra abaixo, até a planície ao nível do mar.
            Cláudia levantou-se com o cabelo em revoluteados ao vento forte do leste e, girando a cabeça, dançava em saracoteios com aquele entusiasmo contagiante do carnaval.
            O irmão aproximou-se da linda Vênus daquele paraíso e enlaçou aquele corpo esbelto, com afeto fraternal, expressando, com sinceridade, o seu pensamento.
            – Cláudia, não pense em brincar o carnaval aqui na Capital. Bem sabemos que isto não é o interior onde, em muitas cidades, folga-se ainda com a honestidade dos cristãos primitivos.
            Com um sorriso ligeiro e as seguintes palavras ela retirou-se.
            – Fique tranquilo! Irei passar estes dias na fazenda do tio Paulo. Já tenho a permissão da mamãe.
            Vieram as folias... Momo recebeu as chaves da cidade...
            Música... álcool... fantasias... máscaras... rebolados... praias... encontros... infidelidades... roubos... desvirginamentos...
            Eram os bastidores do carnaval...
            Mascarados irreconhecíveis, Túlio e Cláudia expandiram-se como diabos libertos do inferno.
            Túlio julgava sua irmã na fazenda do tio.
            Cláudia jamais pensaria em encontrar o Túlio.
            Vieram os primeiros sinais da madrugada de quarta-feira. O rapaz, cruciado, cansado, com remorso, em carro fretado, sobe a estrada da serra. Aproxima-se do alpendre.
            Cláudia, ali, já se encontrava em pranto. Seus olhos estavam afogados em lágrimas e os seus cabelos louros em desalinho.
            Tu, com a fantasia da moça com quem brinquei?... Onde a conseguiste?
            Meu querido irmão, não posso mais viver!... Não poderei dizer à mamãe... Túlio, não sou mais nada...
            Túlio, colocando a máscara nos olhos, enfiando os dedos na cabeleira, correu para as bordas da serra íngreme.
            Cláudia reconheceu o disfarce com que se enganara. Em desespero, rasgou as suas vestes e seguiu, precipitada, o Túlio.
            O sol da quaresma elevou-se vermelho sobre o mar.
        Lá embaixo, envolvidos pelas ondas revoltas, dois corpos são atirados contra a base do penhasco.