José Siebra de Oliveira, setembro-outubro de 1958
(publicado no periódico da AABB do Crato, Ano IV, nº 27)
São 15 horas...
Ainda esta vez, voemos para o
Nordeste.
Vamos entrevistar um Prefeito.
Estamos à altitude de 3.500 metros,
dentro de uma campânula, safírica, apoiada, lá embaixo, em imensa área
circular.
Vislumbramos, em variados panoramas,
verdes chapadões, recôncavos sombrios, aldeias, vilas e cidades, fitas
vermelhas de estradas se estirando por morros e vales, planaltos e baixadas e,
de vez em quando, algum açude, espelho onde se mira o astro-rei.
Nem uma nuvem solitária...
As espadas do sol ferem o peito
desnudo do sertão.
Baixemos um pouco.
Reconhecem aquela cidade?
Não nos será interessante visita-la.
Os políticos vivem, ali, em ebulição. Vez por outra, a fervura aumenta e são
alguns deles atirados à eternidade.
Pobre povo!...
Como a ignorância te anestesia! Não
podes reagir contra a maldade dos politiqueiros. Por esta razão não progrides.
Estás condenado a prolongada
estagnação, com as tuas terras desvalorizadas, apesar de ricas, até o dia em
que algum herói te arranque os grilhões desta politicagem.
Vamos indo... são 15 horas e 45
minutos...
Vejam, no meio do carnaubal, aquele
pontinho branco...
Para lá!...
Faz dez anos ali estivemos em viagem
de comércio.
Mais baixo... agora a curva...
Não brinquem!... este negócio de tirar
fino em torre de igreja não nos dará o sono eterno...
Novamente em terra...
Vamos subindo rua... descendo rua...
quebrando à direita, dobrando à esquerda... e nada de novo neste solo.
O mesmo velho calçamento, atapetado
de capim de burro...
A mesma antiquíssima pracinha
lajeada, com a sua meia dúzia de bancos, os seus quatro pés de fícus e o seu
coreto central...
O mesmo prédio da Prefeitura e,
também, o mesmo da cadeia...
As mesmas ruas arenosas dos
subúrbios...
O mesmíssimo mercado de carne, que
cal não sentiu mais nas suas paredes descascadas...
Apenas uma pequena lavanderia
pública, em que calculamos uma imobilização de Cr$100.000,00...
Somente uma coisa pública progrediu
mais... em extensão... o cemitério...
O aspecto geral da cidade se
apresenta mais bonito, graças ao seu esforço particular.
Muitas dessas casas foram reformadas
e outras construídas...
A igreja, também, foi reedificada.
Olhem lá o seu Amâncio!
Deitado numa preguiçosa, na calçada
de lajes, à sombra da sua bodega, ele lê, embevecido, um jornal da capital,
deleitando-se com a brisa fresca das 16 horas, que vem das bandas da várzea,
com cheiro de muçambê.
Cidadão respeitável, deve estar
vencendo os seus 70...
Simpático, leal, conversador, fez-se
nosso amigo, quando da nossa primeira visita a esta terra.
O seu Amâncio é um dos que sentem
prazer em servir aos semelhantes.
Ele já nos reconheceu...
– Olá, bandidos!... Que diabos ou
santos os trouxeram até cá?...
Ruidosos abraços...
– Viemos entrevistar o Prefeito.
Estrondosa gargalhada do seu
Amâncio.
– Faz um mês que o Prefeito não pisa
nesta cidade. Está construindo um açude na sua fazenda. De lá mesmo, manda as
leis, já todas prontinhas, sancionadas... os vereadores assinam, até mesmo sem
ler... e CUMPRAM-SE...
– Estamos em caminho errado, seu
Amâncio... mas conte-nos algumas do Prefeito.
– Para começar, digo logo que um dos
vaqueiros dele é contínuo da Prefeitura... recebe dinheiro na folha. Fora do
serviço do gado, é apenas o menino de recado da família. A Prefeitura tem um
carpinteiro, um pedreiro, todos funcionários contratados... Vão olhar quantos
móveis há na Prefeitura... quantas paredes novas... Depois olhem como a casa do
Prefeito está cheia de móveis... e que casa bem construída!... Comprou uma
CATERPILLAR para a Prefeitura e a coitada ainda não fez um serviço público... É
da propriedade dele... do irmão dele... do filho dele... do sogro dele... do
genro dele... dos primos dele... e, também, de alguns seus amigos...
Estradas... só fez a que vai da cidade à sua fazenda...
– Seu Amâncio, estamos desolados...
a sua cidade nada progrediu. Seu Amâncio, íamos esquecendo, e a Cota?...
– O nosso prefeito é um cachorro da
moléstia para gostar de Cota. Casou com dona Cota... tem outra Cotinha lá no
Morro do Bagaço... mas desta Cota que vem do Rio é que ele gosta mesmo... Tem
um "jeep" que esta Cota lhe deu... já adquiriu um caminhão por meio
de tal Cota, o qual vive transportando as suas mercadorias para a capital...
Francamente, eu nunca vi outra Cota igual.
– É isto mesmo, seu Amâncio... O que
é lamentável é que, mutatis mutandis, isto é, em modos diferentes, tudo que
acontece aqui é muito comum no Brasil.
– O mais lastimável, ainda, é que
nem uma voz se levantou, até agora, na Câmara Federal, neste particular.
– Em grande parte, este dinheiro da
Cota é perdido para o povo.
– É doloroso... é triste se ver uma
cidade como esta, localizada em bonita e rica região, recebendo Cotas e mais
Cotas, e, ainda mais, com uma apreciável receita anual, sem nenhuma realização,
sem progresso algum, que não a construção da lavanderia e o motorzinho que
fornece luz das 18:30 às 22:30... nada mais...
– É desagradável termos que voltar
sem a nossa entrevista... de qualquer forma, já vimos tudo... não poderia
também mentir o Sr. Prefeito, em tais circunstâncias. Seu Amâncio, estamos
vendo claramente que se houvesse, nesta cidade, uns dez homens como o senhor, a
coisa seria bem diferente.
– Uma andorinha só não faz verão,
amigos. O povo d'aqui, como toda a gente sertaneja, é cordeiro que facilmente
se deixa tosquiar, para lucro do dono. O Prefeito, num ponto de vista, é muito
bom... é calmo, não persegue ninguém... trata os da oposição como amigos...
Agora liguemos o registrador[1]
somente para sintonizarmos uma declaração...
– Seu Amâncio, agradecemos muito e
temos a convicção de que o senhor é uma destas almas simples e boas do sertão,
que se conservam invulneráveis à corrupção dos tempos e, também, que falam
desapaixonadamente.
– B) Amigos, não sou tão bom como
vocês pensam... entretanto, o que eu disse repetirei no céu e no inferno.
– C) Particularmente, o Sr. Prefeito
é um bom cidadão, mas para que negar uma coisa que é publicamente sabida e
relatada? Que fez realmente ele como Prefeito? A verdade deve brilhar em toda
parte.
– Adeus, seu Amâncio. Continue
reagindo... talvez um dia possa fermentar toda a massa...
Aproximam-se as eleições... é a hora
de novas atitudes...
Pobre Brasil caboclo!... até quando
serás explorado por esta vil politicagem?...
Nem tudo porém está perdido! Temos
fé em Deus, acima de tudo, e nos homens de boa vontade, que, dia a dia, se vão
multiplicando.
É impossível vivemos assim por mais
tempo... as coisas devem mudar!...
As penitenciárias do Brasil deverão
servir, também, para os ricos, pois, do contrário, teremos que afirmar
publicamente que a justiça é uma farsa.
NOTA: – Declaramos, ainda uma vez,
com absoluta sinceridade, que não é intenção nossa ferir ou vulnerar qualquer
cidadão vivo ou morto, e que qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido
apenas uma inevitável coincidência.
[1] Registrador de Consciências: Fabulosa engenhoca capaz de diferenciar, numa
entrevista, as falas ditas pela boca (B) dos pensamentos tidos pela consciência
(C).