quinta-feira, 12 de fevereiro de 2015

CASCA E MIOLO... II – ENTREVISTA FRUSTRADA




José Siebra de Oliveira, setembro-outubro de 1958 (publicado no periódico da AABB do Crato, Ano IV, nº 27)

            São 15 horas...
            Ainda esta vez, voemos para o Nordeste.
            Vamos entrevistar um Prefeito.
            Estamos à altitude de 3.500 metros, dentro de uma campânula, safírica, apoiada, lá embaixo, em imensa área circular.
            Vislumbramos, em variados panoramas, verdes chapadões, recôncavos sombrios, aldeias, vilas e cidades, fitas vermelhas de estradas se estirando por morros e vales, planaltos e baixadas e, de vez em quando, algum açude, espelho onde se mira o astro-rei.
            Nem uma nuvem solitária...
            As espadas do sol ferem o peito desnudo do sertão.
            Baixemos um pouco.
            Reconhecem aquela cidade?
            Não nos será interessante visita-la. Os políticos vivem, ali, em ebulição. Vez por outra, a fervura aumenta e são alguns deles atirados à eternidade.
            Pobre povo!...
            Como a ignorância te anestesia! Não podes reagir contra a maldade dos politiqueiros. Por esta razão não progrides.
            Estás condenado a prolongada estagnação, com as tuas terras desvalorizadas, apesar de ricas, até o dia em que algum herói te arranque os grilhões desta politicagem.
            Vamos indo... são 15 horas e 45 minutos...
            Vejam, no meio do carnaubal, aquele pontinho branco...
            Para lá!...
            Faz dez anos ali estivemos em viagem de comércio.
            Mais baixo... agora a curva...
            Não brinquem!... este negócio de tirar fino em torre de igreja não nos dará o sono eterno...
            Novamente em terra...
            Vamos subindo rua... descendo rua... quebrando à direita, dobrando à esquerda... e nada de novo neste solo.
            O mesmo velho calçamento, atapetado de capim de burro...
            A mesma antiquíssima pracinha lajeada, com a sua meia dúzia de bancos, os seus quatro pés de fícus e o seu coreto central...
            O mesmo prédio da Prefeitura e, também, o mesmo da cadeia...
            As mesmas ruas arenosas dos subúrbios...
            O mesmíssimo mercado de carne, que cal não sentiu mais nas suas paredes descascadas...
            Apenas uma pequena lavanderia pública, em que calculamos uma imobilização de Cr$100.000,00...
            Somente uma coisa pública progrediu mais... em extensão... o cemitério...
            O aspecto geral da cidade se apresenta mais bonito, graças ao seu esforço particular.
            Muitas dessas casas foram reformadas e outras construídas...
            A igreja, também, foi reedificada.
            Olhem lá o seu Amâncio!
            Deitado numa preguiçosa, na calçada de lajes, à sombra da sua bodega, ele lê, embevecido, um jornal da capital, deleitando-se com a brisa fresca das 16 horas, que vem das bandas da várzea, com cheiro de muçambê.
            Cidadão respeitável, deve estar vencendo os seus 70...
            Simpático, leal, conversador, fez-se nosso amigo, quando da nossa primeira visita a esta terra.
            O seu Amâncio é um dos que sentem prazer em servir aos semelhantes.
            Ele já nos reconheceu...
            – Olá, bandidos!... Que diabos ou santos os trouxeram até cá?...
            Ruidosos abraços...
            – Viemos entrevistar o Prefeito.
            Estrondosa gargalhada do seu Amâncio.
            – Faz um mês que o Prefeito não pisa nesta cidade. Está construindo um açude na sua fazenda. De lá mesmo, manda as leis, já todas prontinhas, sancionadas... os vereadores assinam, até mesmo sem ler... e CUMPRAM-SE...
            – Estamos em caminho errado, seu Amâncio... mas conte-nos algumas do Prefeito.
            – Para começar, digo logo que um dos vaqueiros dele é contínuo da Prefeitura... recebe dinheiro na folha. Fora do serviço do gado, é apenas o menino de recado da família. A Prefeitura tem um carpinteiro, um pedreiro, todos funcionários contratados... Vão olhar quantos móveis há na Prefeitura... quantas paredes novas... Depois olhem como a casa do Prefeito está cheia de móveis... e que casa bem construída!... Comprou uma CATERPILLAR para a Prefeitura e a coitada ainda não fez um serviço público... É da propriedade dele... do irmão dele... do filho dele... do sogro dele... do genro dele... dos primos dele... e, também, de alguns seus amigos... Estradas... só fez a que vai da cidade à sua fazenda...
            – Seu Amâncio, estamos desolados... a sua cidade nada progrediu. Seu Amâncio, íamos esquecendo, e a Cota?...
            – O nosso prefeito é um cachorro da moléstia para gostar de Cota. Casou com dona Cota... tem outra Cotinha lá no Morro do Bagaço... mas desta Cota que vem do Rio é que ele gosta mesmo... Tem um "jeep" que esta Cota lhe deu... já adquiriu um caminhão por meio de tal Cota, o qual vive transportando as suas mercadorias para a capital... Francamente, eu nunca vi outra Cota igual.
            – É isto mesmo, seu Amâncio... O que é lamentável é que, mutatis mutandis, isto é, em modos diferentes, tudo que acontece aqui é muito comum no Brasil.
            – O mais lastimável, ainda, é que nem uma voz se levantou, até agora, na Câmara Federal, neste particular.
            – Em grande parte, este dinheiro da Cota é perdido para o povo.
            – É doloroso... é triste se ver uma cidade como esta, localizada em bonita e rica região, recebendo Cotas e mais Cotas, e, ainda mais, com uma apreciável receita anual, sem nenhuma realização, sem progresso algum, que não a construção da lavanderia e o motorzinho que fornece luz das 18:30 às 22:30... nada mais...
            – É desagradável termos que voltar sem a nossa entrevista... de qualquer forma, já vimos tudo... não poderia também mentir o Sr. Prefeito, em tais circunstâncias. Seu Amâncio, estamos vendo claramente que se houvesse, nesta cidade, uns dez homens como o senhor, a coisa seria bem diferente.
            – Uma andorinha só não faz verão, amigos. O povo d'aqui, como toda a gente sertaneja, é cordeiro que facilmente se deixa tosquiar, para lucro do dono. O Prefeito, num ponto de vista, é muito bom... é calmo, não persegue ninguém... trata os da oposição como amigos...
            Agora liguemos o registrador[1] somente para sintonizarmos uma declaração...
            – Seu Amâncio, agradecemos muito e temos a convicção de que o senhor é uma destas almas simples e boas do sertão, que se conservam invulneráveis à corrupção dos tempos e, também, que falam desapaixonadamente.
            – B) Amigos, não sou tão bom como vocês pensam... entretanto, o que eu disse repetirei no céu e no inferno.
            – C) Particularmente, o Sr. Prefeito é um bom cidadão, mas para que negar uma coisa que é publicamente sabida e relatada? Que fez realmente ele como Prefeito? A verdade deve brilhar em toda parte.
            – Adeus, seu Amâncio. Continue reagindo... talvez um dia possa fermentar toda a massa...
            Aproximam-se as eleições... é a hora de novas atitudes...
            Pobre Brasil caboclo!... até quando serás explorado por esta vil politicagem?...
          Nem tudo porém está perdido! Temos fé em Deus, acima de tudo, e nos homens de boa vontade, que, dia a dia, se vão multiplicando.
            É impossível vivemos assim por mais tempo... as coisas devem mudar!...
            As penitenciárias do Brasil deverão servir, também, para os ricos, pois, do contrário, teremos que afirmar publicamente que a justiça é uma farsa.

            NOTA: – Declaramos, ainda uma vez, com absoluta sinceridade, que não é intenção nossa ferir ou vulnerar qualquer cidadão vivo ou morto, e que qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido apenas uma inevitável coincidência.  


[1] Registrador de Consciências: Fabulosa engenhoca capaz de diferenciar, numa entrevista, as falas ditas pela boca (B) dos pensamentos tidos pela consciência (C).