terça-feira, 30 de junho de 2015

Pedrinho e o Galo de Ouro







José Siebra de Oliveira (publicado em dezembro de 1964 no Num. 22, Ano IX do Periódico da AABB Crato)

Chegara o pequeno do colégio onde cursava a primeira série ginasial. Havia-se matriculado naquele estabelecimento graças à interferência do Dr. Fernando Carlos, que, com imensa admiração, acompanhava o desenvolvimento do menino. Ambos assemelhavam-se pelos arroubos dos idênticos sentimentos em suas almas de filósofos. Por sua brilhante inteligência, conquistara Pedrinho, em exame de seleção, uma bolsa de estudos e revelava-se, então, arguto, perspicaz, genial e de grande fidalguia de coração.

Sentara-se à beira da tosca cama onde sua mãe, desde uns cinco anos, se encontrava paralítica. Seus olhares cruzaram-se, como sempre, em silenciosa expressão de profunda angústia pela carência de uma vida, pelo menos, sem penúria.

Aproximava-se já do seu décimo aniversário. Jamais fruíra a felicidade do amor paterno. Ainda no segundo mês de sua existência, o pai falecera vitimado por violenta moléstia, consequência de trabalhos excessivos e subnutrição.

Sua genitora, excelsamente prendada, inspirava-lhe espírito de luta e heroísmo. Mostrava-lhe a celeridade da existência, nesta curta reta pontilhada de instantes a se consumirem entre o passado e o futuro, entre o berço e o túmulo. "Meu filho", dizia ela, "a vida deve ser vivida, em cada um dos seus segundos, em função de Deus e dos nossos semelhantes." Antes que sua mãe o dissesse, estes pensamentos já eram firmes e florescentes no cérebro de Pedrinho.

Viviam, inclusive uma tia do pequeno, a qual com eles moravam, da escassa generosidade de alguns de seus parentes abastados, que os enxergavam ainda, pelo fraco impulso de resíduos sentimentais de caridade de uma débil fé, bruxuleantes naqueles espíritos materializados. Também não faltava àquela pobre família o conforto da presença e dos auxílios do Dr. Fernando.

A criança manifestava sempre imensa mágoa por não possuir, como outros meninos, a companhia de um pai bondoso e de uma mãe sadia e forte.

A esmerada educação daquela mulher, transmitida, com sabedoria, ao filho, impedira-o de resvalar nas ladeiras da malandragem. Tornava-se cada dia mais estudioso e mais solícito. Dúvidas e objeções afloravam-lhe, constantemente, à alma, de tudo desejando e procurando a razão de ser. Suas curiosas inquirições embaraçavam mestres e amigos.

Levantando-se da cama, Pedrinho comunicou o seu propósito de, naquela véspera de Natal, olhar o bonito pinheiro natural, que se encontrava, enriquecido de presentes, no jardim da residência de seu parente rico, Sr. Paulo Antônio.

"Mamãe, o bobo Papai Noel, que alimenta a parvalhice dos meninos ricos, não passará em casa de pobres. É ele essencialmente capitalista. Suas dádivas não serão para mim. Vou, entretanto, observar aquelas comemorações, na casa de Paulo Antônio, as quais poderão ser a caricatura do nascimento de outro qualquer, menos a expressão do de Cristo."

Pedrinho tinha razão. Atualmente, as festas do Natal, em muitos lares, são apenas manifestações de um modo existencialista de vida.

As horas passaram-se...

Além da Serra do Araripe, o sol já mergulhava para a outra banda da terra, ferindo, com suas espadas de luz, o peito desnudo do céu e o sangue dos espaços derramava-se, sobre a cidade, em pulverizações de ouro e pérolas.

Pedrinho dirigiu-se para aquela casa, magnificamente ornamentada, no bairro elegante do Pimenta. Andou muito por aquele bonito subúrbio do Crato. Sentou-se, por momentos, nos degraus da entrada do Crato Tênis Clube.

Já era noite... as lâmpadas, em policromia, espargiam sua variada luz sobre as folhas das árvores.

Pedrinho aproximou-se da casa do Sr. Paulo Antônio e recostou-se ao muro do jardim. Não fora convidado.

Bolinhas matizadas, pendentes dos galhos do pinheiro, atraíam, com seus revérberos, os olhares curiosos dos presentes.

Um frondoso cedro do Líbano, uma figueira italiana, copudas e floridas acácias, balançavam-se com o vento fresco da noite.

O jardim estava risonho, cheio de verbenas e margaridas.

Isto, dizia Pedrinho, parece mais com o palácio de Herodes do que com a gruta de Belém.

Na rua, parara mais um automóvel. Era o aero-willys do Dr. Fernando, amigo daquela família. Ao abrir das portas, uma torrente de oito crianças fluíra daquele carro, enchendo aquela casa de vida e alegria. Eram os filhos do renomado médico.

Nenhuma atenção fora dispensada, até então, ao Pedrinho. Paulo Antônio, uma vez, fitara-o com desdém e, como sempre, quando Pedrinho por lá aparecia, nem lhe indagara pela mãe, sua parenta próxima.

O Dr. Fernando, ao passar, abraçou o Pedrinho e foi sentar-se na biblioteca do anfitrião, onde começou a folhear um livro de Jean Paul Sartre, escritor a quem a França dera o prêmio Nobel e o qual ele considerava como um grande gênio que, por desfeito (sic) de base, perdeu o verdadeiro sentido da existência.

Dr. Fernando contava pensando... Passaram Descartes e Francis Bacon... Passaram Kant e Hegel... Passaram Kierkegaard e Heidegger... Também passará Jean Paul Sartre. Jamais passará, todavia, a estrela de Belém.

Chegava a hora dos comes e bebes... todos foram arrastados pelo Sr. Paulo Antônio para o interior da casa.

Padrinho, obscuro como sempre, ficara sozinho no jardim. Observava aquelas fulgurações feéricas e, sobretudo, aquele galo de ouro maciço, com bico de platina e olhos de brilhantes, preso em um dos galhos do pinheiro. Aquele galinho, de grande valor intrínseco e estimativo, fora um dos dezenove fabricados quando era imperador D. Pedro II e oferecidos, por razões ainda ignoradas, a todas as províncias do país. Viera, ignora-se o motivo, do Grão Pará, no tempo do Brasil império, para as mãos dos ascendentes daquela família. Ali representava o galo de Belém.

Ausente o Menino Deus... nada de anjos... nem presépio... nem estrela... nem José nem Maria... nem reis ou pastores do oriente... somente uma árvore... um galo de ouro... enfeites e presentes pendentes dos galhos do pinheiro... e uma miniatura de Papai Noel no tronco da árvore...

Lá dentro, o bar e a geladeira estavam empazinados de cervejas, uísques, guaranás, etc... etc... e a indispensável coca-cola...
            A preocupação do Sr. Paulo Antônio pelos convidados, bem como a de sua esposa, fizeram-lhe esquecer o galo de ouro. Aquela obra-prima ficara naquela árvore, como a maçã do paraíso, num tentador convite ao crime do roubo.

Túlio, da mesma idade de Pedrinho, saiu correndo do interior da casa e gritou para o pequeno: "Toma este pedaço de bolo!... vem olhar de perto o galinho!..." Pedrinho começou a voltear aquela bonita árvore de Natal. Algum tempo depois... Túlio havia entrado e Pedrinho encontrava-se na calçada.

O Dr. Fernando ainda lia na biblioteca, de onde olhava, de soslaio, aquele menino. Crianças felizes e adultos alcoolizados precipitaram-se do interior da casa, em grande alvoroço.

No meio deles vinha o Sr. Paulo Antônio, cujos gritos não se fizeram esperar, ao perceber que havia desaparecido o galo de ouro. "Roubaram o galo!... Polícia!... Polícia!..." Logo correu o Sr. Paulo Antônio, agarrando o Pedrinho, que ainda se encontrava na calçada. "Foi você!... Foi você!... Onde o escondeu, seu ladrãozinho?... Vamos!..."

Não obstante os esforços do Dr. Fernando, por exigência do Sr. Paulo Antônio, um soldado conduziu Pedrinho à presença do juiz de menores, que sem a menor piedade, mandou que ele ficasse detido no pátio interno da Penitenciária, até que fosse o assunto esclarecido.

Deitado no chão, sentindo o mau cheiro das celas, olhando o brilho das estrelas, entendendo a hipocrisia dos homens, ele pensava... "Estes ricos orgulhosos... avarentos... jamais entrarão no reino dos céus... pobres ricos..."

Os filhos do Dr. Fernando já se encontravam no automóvel. Ele, entretanto, permanecia ainda na calçada, à espera de alguém. Túlio passava ligeiro. O médico segurou-o pelo braço. "Tulinho, venha cá. Não acredito que o Pedrinho tenha roubado o galinho de ouro. Reputo ser você um menino bom e educado e certamente não o pensará também."

Os olhos de Túlio inclinaram-se para o chão. "Fui eu, Dr. Fernando, quem escondeu o galo de ouro. Por obséquio, não o diga a papai." Tirando do bolso a preciosa joia, entregou-a ao Dr. Fernando, que a recolocou no galho da árvore.

"Não temas, nada direi. A tua primeira ação foi de um covarde, porém de herói foi a tua segunda atitude."

"Paulo Antônio, o galo apareceu", gritava, alegre, o Dr. Fernando. Vou soltar o Pedrinho.

"Não se incomode com o pequeno. Amanhã providenciarei para que ele volte para casa." Estas palavras, pronunciadas com desinteresse pelo Sr. Paulo Antônio, disseram bem do seu profundo egoísmo.

"Não, Sr. Paulo! Uma injustiça não se prolonga! Vou soltá-lo imediatamente", disse irritado o Dr. Fernando.

Ao entrar no seu aero-willys, brotaram, dos seus lábios, aquelas mesmas palavras de Pedrinho: "Isto mais parece o palácio de Herodes do que a gruta de Belém. Os egoístas... os existencialistas vivem para si." Rápido, dirigiu-se para a penitenciária, onde o menino se encontrava deitado nas lajes, fitando o céu estrelado.

"Vamos, Pedrinho! Eu sabia que você jamais seria um ladrão!"

Os filhos do Dr. Fernando observavam todas aquelas cenas com muita curiosidade.

Quando soaram as doze badaladas da meia-noite, aquelas crianças já dormiam... e Cristo passava, pelas casas da cidade, em espírito e em verdade.

Levantando-se, às seis horas do dia 25 de dezembro, Pedrinho dirigiu-se para o quarto de sua mãe, onde encontrou uma linda bicicleta, presente de um dos filhos do Dr. Fernando, com o seguinte oferecimento:

"Ao Pedrinho, por ordem do papai, oferece o seu admirador, JOSÉ ROLANDO"