quarta-feira, 22 de julho de 2020

Reportagem Matuta



Reportagem Matuta



Cumpade, você bem sabe
Qui muito tempo já faz,
Dez ano vão pra trás
Foi na guerra das Orópa,
Já bem pertinho da paz.

No Campo-Sale eu peguei
O caminhão do Basílio,
Passemo nos Araripe,
Gente boa e cum estilo,
Mas a cidade é a merma,
Eu num sei qui é aquilo.

E depois subimo a serra,
Estoremo na centrá,
Feita toda cum dinheiro
Do governo federá.
Cumpade, o fim num se vê,
É lisa cuma num há.

Basilo o pé apertô,
Entoce o carro correu,
Corria pra trás o mato,
O vento batia neu,
Meu bucho subiu pra guéla,
A língua toda incuieu.

Eu ia muito assombrado
De virá o caminhão,
Pois eu só vejo é buato
Das virada que eles dão.
Eu perdi inté o purso
E quase perco a rezão.

Mas cuma sô cearense
Disposto e trabaiadô,
Resisti, inté o fim,
A carreira do motô
E já bom estava achando
Vendo o céu mudá de cô.

Da outra vez fui ao Crato
No meu cavalo alazão,
O bichinho era ligeiro,
Depressa vencia o chão. 
Resorvi ir desta vez
In riba dum caminhão.

Já era bem detardinha,
Mas cumpade, qui beleza!
Tava o céu todo incarnado,
Qui nem grande brasa acesa,
A serra bem verde e escura,
Qui bonita natureza!

E quando deu as seis horas,
A ladeira ia descendo,
E, lá bem longe, a cidade
Foi aos óio aparecendo,
Qui nem jóia bem brilhante,
Na verdura se prendendo.

As torre de sua igreja
Parecia o céu furá,
E muito prédio bonito
Pra riba a se alevantá,
Qui nem sangue, a luz do sol
Toda a cidade a banhá.

Na Batateira encontrei,
Por alemães construído,
Um casão muito bonito,
Da estrada ao lado estendido,
Um grupo de padre bom,
Bem santo e muito instruído.

Já tava assim quase escuro,
Chegamo e fumo jantá.
Me agasaei, cuma ante,
Na pensão família,
De muié senti sordade,
Dos fio e do macunzá.

Quando jantemo, eu saí
Pra vê todo o movimento,
Qui tristeza, qui horrô,
Senti em certo momento,
Vendo dois a se abraçá,
Sem passá nem pensamento.

Mais é possíve, qui é isto?
Nesta cidade do Crato,
Estas coisa eu nunca vi
Lá no sertão, lá no mato,
Debaixo de um pé de pau,
Um tamanho desacato!

E fui andando e fui vendo,
De vez in quando um pasinho,
De mãos dadas, sem vergonha,
Encostados, bem juntinho,
Na minha arma ia cravando
Cada pá um grande espinho.

Logo entoce eu me alembrei
De todos os sertanejo,
Qui tem muita honestidade
E de bondade é sobejo,
E muita sinceridade
Em suas ação sempre vejo.

Cuma é tão puro o luá,
Nas terra do meu sertão,
Beijando os óios das virge,
Banhadas no seu clarão,
Belas e puras donzelas
E de tão bom coração.

O rapaz fica doidinho,
Apaxonado pur ela,
Mais nem siqué tocá pode
Nem mermo no dedo dela,
Somente no casamento,
De braço vão à capela.

Mais lá no Crato, cumpade,
A lua desfaleceu,
Num tem graça nem beleza,
Ela inté já escureceu
E pra muita donzelinha
Os seus incanto escondeu.

Qui beleza pode tê
O luá se derramando,
Entre pares tão mardosos,
O pecado alumiando,
O brio da sua luz
E a sua prata sujando?

Aquerditá eu num posso
Qui dela goste o rapaz,
E se assim anda mais ela,
É pur mardade qui faz,
Pra fazê dela instrumento
Do má instinto que traz.

Qui ducação vai saí
De tantos casais assim,
Qui, antes de se casar
Já andaro em má camim,
É quá quem vai armoçá,
Cumê antes bem capim.

Mais felizmente, cumpade,
Num é rim o Crato todo.
Dizê isto era jogá
O seu povo bom no lodo,
É querê tingí o má
Cum dez pingo de iodo.

E fui andando, cumpade,
Pur as rua da cidade,
Muito carro, muita gente,
E sempre cum novidade,
Eu oiêi pra tudo aquilo
Cum prazê e ansiedade.

Logo fui à catedrá,
Cumpade, tá um esplendô,
Toda bela, alumiada,
O padre é trabaiadô,
Muito santo o seu vigáro,
Um discipo do Senhô.

Não é arto pade não,
Mas é um mostro, cumpade,
Fiquei muito admirado
Do valô daquele pade.
O que lhe farta na artura
Lhe sobra na sua bondade.

Mas, cumpade, eu digo agora,
Eu sô home, mas chorei,
Quando cheguei na igreja
E ali não mais achei
O meu bom padim Assis,
In tristeza eu me afoguei.

Este home santo e bom,
Conheci nos Inhamum,
Ele nunca teve orguio
E nem conforto nenhum,
Era amave a sua pessoa,
Num tinha pecado argum.

Entoce fui ao cinema,
As figura inté falava,
Bem cheinha toda a sala,
Tiro no firme estorava,
Quando o tiro era pá frente,
Na cadeira eu me abaxava.

Os cavalo só correndo,
Uma poeira danada,
E minha gripe que eu tava
Ficou muito apiorada.
Senti a minha cabeça
Cuma assim que tava inchada.

Logo entoce eu fui descendo,
E numa farmácia entrei
De um tá Zé Figueiredo
Cum o quá eu me encontrei,
Gosta muito de matuto
E cum ele eu conversei.

É muito bondoso o moço
E também delicado,
Pru seu modo de fala
Vi que ele é preparado,
E puro povo que entrou,
Notei que é muito estimado.

Pedi a pila de vida,
Pru mode eu ir me deitá,
Mais me deu foi uma caspa
E saí a mastigá
A bicha tanto amargava
Qui nem fé, qui nem juá.

De repente fiquei bom,
Minha cabeça acarmô,
Eu disse, deu cá pra eu,
Esse moço num é dotô,
Muito estudo pode tê,
Mas eu sei num se formô.

Pois os formado de hoje,
Cum quarqué dô de cabeça,
Dize logo, é pendicite,
Vorte logo num se esqueça,
Você deve se operá,
Hoje é sabo, venha terça.

Inventaro agora mermo,
Um tá de amerba no Crato,
E qui é, qui nem furmiga,
Comendo o figo e o fato,
Jurgo se pura a rezão
De tê dotô qui nem mato.

Fui ao Branco do Brasí,
No ôto dia bem cedo,
Eu cheguei desconfiado,
Sentindo um gelo em meu dedo,   
Eu entrei naquela casa
Cum coração chei de medo.

Mas, cumpade, qui mudança,
Senti logo de repente,
Eu falei cum moço gordo,
Me disseram que é o gerente.
Cumpade, ele é tão bondoso,
Um cidadão bem decente.

Fiquei muito satisfeito
Cum seu dotô Moací,
O cidadão delicado,
Cuma ele nunca vi,
De sua grande bondade
Eu nunca mais me esqueci.

Tanto faz o home rico
Cuma o pobe ele recebe,
Tanto faz o home honesto
Cuma um qui cana bebe.
Cuma ele nesta terra,
Nenhum ventre ôto concebe.

Conheci o seu Amaro,
De todos muito estimado,
É ativo e inteligente,
Ô veinho bom danado,
Se lhe dizem quarqué coisa,
Ele nunca fica calado.

Vi também seu Alencá,
Jeitoso na falação,
Tem mimória muito boa
E tem muita educação,
Conhece todo matuto
Dessa nossa região.

Um tá de seu Epitácio,
Eu vi ele só sentado,
Num levantava a cabeça
Na mesa dele emborcado,
Sereno cuma a preguiça,
No seu trabaio agarrado.

Ao contrário tem um outro,
Toda vida alevantado,
E inté pur sua conversa,
Notei que é muito exartado,
Um tá de Zé Mariano
Qui é difice está calado.

Tem um qui trabaia preso
Na gaiola do dinheiro,
Depois sube que é seu Sávio
De famia dos Pinheiro,
Eu num gostei muito dele,
Só me chamô derradeiro.

Noutra gaiola também,
Seu Mozá, home decente,
Tem muita delicadeza,
Dá muita atenção a gente,
É carmo, trabaiadô,
É um moço inteligente.

Entoce o Toim Landim
Gosta de fazê favô,
Me levô inté lá dento,
Pra carteira do penhô
E disse pra seu Osvardo:
Num descuiambe o portadô.

Seu Osvardo é moço bom,
Mais tava muito zangado,
Ficando de toda cor,
Cuma assim quem tá danado,
Mas me disse, me descurpe,
Estô cuns nervo estragado.

Me arrecebeu seu Osvardo,
Comigo teve atenção.
Entoce logo entendi
Qui tem um bom coração.
É verdade, ele se infeza,
Mas é cum toda rezão.

O sr. Seu Carlos Pêdo
É muito compenetrado,
Cumele num conversei,
Pois vive sempre ocupado,
Nem nunca fica falando,
Nem nunca fica parado.

Um qui vi in Campo-Sale,
Qui é bem desmantelado,
Qui trabaiô no cadastro,
E qui vive só barbado,
Tem um ar de seu juízo,
Ô qui maluco danado!

Pra apresenta suas descurpa,
Este doido me pediu,
Ao colega Aureliano,
A quem ele já feriu.
Disse que tá arrependido
E disto bem sentiu.

Lembrá me fez seu Eurico
Minha viagem a Canindé.
Lá vi um home buchudo,
Quaji virô muié,
Pur num querê crê in santo
E pruquê num tinha fé.

Aquele home, porém,
Fez promessa, aquerditô
E logo ficô bonzinho,
E a sua barriga baxô.
Aconseei seu Eurico
Que cresse in Nosso Senhô.

Tem o Chico, o Manelito,
O libório, Antonio Agusto,
Um lôco que nem môto,
Fez a todo mundo susto,
Arriscando a sua vida,
Qui ganhou cum tanto custo.

Tem o Guion e mais ôtos,
Qui os nomes num aprendi,
Inté dos ôtos mais véi,
Eu também já me esqueci.
Mas são todos moços bom,
Cuma eles nunca vi.

Eu já ia me esquecendo
De um qui é bem miudinho,
Tem um porte leviano,
É metido a engraçadinho,
Muito espírito, sem ter carne,
É por certo levisinho.

Do banco saí, cumpade
Muito andei pela cidade.
E do passeio qui dei
Ainda sinto sordade,
Daquela terra tão boa,
Dum povo chei de bondade.

Eu só num sinto sordade
Dos namorico de lá,
De tanta muié já véia,
Mostrando as peia da pá,
Cá manga lá no suvaco
Qui inté nojo a gente dá.

Meu cumpade me esqueci,
Mas inda lhe digo agora,
Eu vi no Crato umas freira
Tá e quá Nossa Senhora,
Todo mundo gosta delas.
Deus queira num vão imbora.

Muitas e muitas coisa
Eu tenho pra lhe contá,
Porém a noite vai arta,
Já é hora de pará.
Fica pra otra cunversa,
Quando nós dois se incontrá.

Boa noite meu cumpade,
Agora vô me deitá.
Eu num me esqueço de casa,
Do pirão cum macunzá,
O menozim comeu muito,
Pode inté impanziná.

Mais, meu cumpade, eu tô certo,
Terra boa é meu sertão,
Onde é bela a lua cheia,
Onde é gostoso o feijão,
Onde se brinca feliz
Nas noites de São João.

Crato (CE), 20 de maio de 1955.
José Siebra de Oliveira