quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Casca e Miolo IV - Conversa com um Médico



José Siebra de Oliveira, março de 1959 (publicado no periódico da AABB do Crato)

            Depois de complicado e longo processo burocrático, volta às nossas mãos o registrador de consciência.
            Pousamos no mais importante aeroporto do planalto central, vencemos, de táxi, os quinze quilômetros que dele nos separam, e aqui estamos, no vigésimo andar do EDIFÍCIO IPIRANGA.
            Há mais de uma hora, o renomado clínico atende a um cliente, o último dos oito receitados, quatro pela manhã, quatro à tarde.
            São cinco horas e cinquenta minutos...
            Abre-se a porta do consultório e recebemos ordem de ingresso.
            Vê-se, sobre a secretária, volumoso livro em que são anotados sintomas, doenças, antecedentes, remédios indicados e dados biográficos dos pacientes.
Cada receita custa quinhentos cruzeiros...
O nosso aparelho já funciona...
Fazemos as saudações protocolares e, depois de nos termos dado a conhecer reciprocamente, atiramos a primeira pedra...
– V. S. é muito procurado nesta capital.
– B)[1] Não sei qual o motivo. Muitos colegas me superam.
– C)[2] Trabalho honestamente. Não me esqueço dos livros. Fiz ótimo curso. Desprezava as brincadeiras prejudiciais. Consegui sempre boas notas. Jamais me servi de pistolões, presentes a professores e outros processos degradantes que, longe de me fazerem um médico, me transformariam num grande impostor.
– V. S. sempre quis ser médico?
– B) Desde criança... desejava concorrer para a felicidade do povo.
– C) Sempre desejei servir aos semelhantes, sobretudo aos humildes. Para isto tenho dois dias, na semana, de receitas gratuitas.
– V. S. demora bastante com cada cliente?
– B) Amo o trabalho honesto.
– C) Considero furto receber dinheiro sem analisar o estado do paciente. A observação deve ser completa. Muitas vezes, enfraquece uma parte do organismo, consequência de distúrbios em outros setores. Quando se evidencia um órgão doente de que não se acusa o paciente, não sendo da minha especialidade e competência, aconselho-o a procurar o médico indicado. De qualquer forma, faço exame geral. Somente assim posso realizar a missão que abracei.
– V. S. conhece incapazes na classe?
– B) Nunca observo a vida dos colegas. Penso, entretanto, que o governo devia ser mais rigoroso na seleção daqueles a cujas mãos vão ser confiadas muitas vidas.
– C) Conheço diversos, Brasil afora, que fazem do consultório uma bodega. Surge um cliente atacado de gestão pulmonar... Eles, sem uso de aparelhos, indicam remédios para dores intestinais. Outros até prolongam a doença, quando descobrem que o paciente é rico. Incompetentes outros, pelo curso que fizeram, pelos métodos vergonhosos que empregam, pela ignorância em questão de diagnósticos, tornam-se verdadeiros criminosos. E o que é pior... ninguém pode provar nem combater.
– Que julga V.S. dos que provocam o aborto?
– B) Sobre este ponto, em particular ou de público, qualquer que seja o processo de aniquilamento da vida, sempre estarei em luta contra os que assim agem. Considero o direito de nascer muito sagrado. Aqueles que assim procedem são tão criminosos como os pistoleiros dos sertões. A sua licença devia ser cassada, sem possibilidades de retorno à profissão. Para mim, é o caso objeto de Tribunal do Júri. Infelizmente o mundo ainda não compreender isto e não quer considerar como homem aquele que ainda não viu a luz.
– C) (Idênticas impressões observam-se no registrador).
– Muito obrigado, doutor. Que Deus dê ao Brasil muitos médicos da sua qualidade. Antes de ser um grande médico, V. S. é um grande homem.
O que ainda nos conforta é que são poucos os médicos de baixo quilate. Sempre têm eles o coração largo e cheio de amor e bondade, trabalhando com honestidade e abnegação, para que vivam os brasileiros.

NOTA: Qualquer semelhança com pessoas ou fatos terá sido uma inevitável coincidência.


[1] Boca. (N. do editor)
[2] Consciência (N. do Editor)