sábado, 26 de setembro de 2020

O Relógio (Fragmento)

 


O Relógio (Fragmento)

 

José Siebra de Oliveira, 1948

 

            Na mão tenho um relógio.

            Fito-o admirando a complexa engrenagem e a inteligente disposição de suas peças, num trabalho constante, uniforme e quase silencioso.

            Vejo nele uma inteligência que o realizou e uma finalidade que o faz querido pelos homens.

            Quanto mais o observo tanto mais vasto e profundo se apresenta seu campo de estudo.

            Aprecio-o, rodopiando em derredor de suas mil faces, na escolha de um ponto que mais me impressione para que melhor o expresse.

            Sua finalidade é dizer que o tempo está passando, repetindo sempre o decurso do sol na sua trajetória, ontem, hoje, amanhã, antes, agora, depois, a fim de que regulem os povos o início e a duração de suas atividades.

            Além deste fim, deram-lhe os exploradores da vaidade alheia e da estultice dos homens, afeição de joia de mimo e na sociedade moderna não se compreende um cavalheiro de fina classe, uma dama elegante sem que o exponha gracioso ao braço.

            O seu uso é universal, tanto na sua evolução histórica, desde o de madeira que marcava o tempo pela sombra e o de areia, até o relógio automático e elétrico moderno, como também nas suas variedades atuais de tamanho e qualidade, desde o Big Ben de Londres ao mais grosseiro e barato do matuto.

            Na vida social é de necessidade. Indica os momentos de preces e mostra aos degenerados as horas dos crimes.

            Na alegria diminui o tempo com inveja dos homens e na dor o prolonga para martirizá-los,

            Sacode de júbilo o coração da noiva quando mostra a hora do seu enlace e oprime de tristeza o coração da viúva quando diz que chegou o instante de levarem de casa o cadáver daquele que foi o seu esposo.

            Alegra o coração do pai que grava por ele o instante do nascimento do seu filho e dilacera o peito da mãe carinhosa que, desde o momento doloroso da morte de uma filha dileta, fica com o ângulo dos seus ponteiros em silhuetas de foto sempre a queimar-lhe a alma nas trevas da sua imaginação e na tela de sua memória.

            A mulher que, agravada e chorosa, espera alta noite o marido que gasta suas energias e seu dinheiro nos lupanares, não o olha (o resto do texto está perdido)

 

           

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