José
Siebra de Oliveira, outubro de 1964. Publicado no Periódico da AABB Crato, Ano
IX, número 20.
No extenso e plano baixio, entre montanhas adjacentes,
os cachos dourados do arrozal valsavam ao vento fresco da manhã.
De faquinhas afiadas, um adjunto de trinta carrascos
ia degolando, sem piedade, as lindas dançarinas que, com suas verdes folhas
farfalhantes, executavam a mais bela sonata.
Recostado a uma troncuda e frondosa cajazeira, o
proprietário, sr. Jorge Lima, observava o trabalho, enlevado pelo pensamento no
lucro.
Um par de alegres e inocentes crianças corria entre as
touceiras decepadas, enriquecendo, com a mais expressiva tonalidade, tão
empolgante quadro.
Em seus revoluteados, exibiam suas cabecinhas apenas,
contrastando-se os ebâneos cabelos de Marquinho com os louros de Rosita.
Parente da genitora da amiguinha, morava ali com seu
pai, graças à bondade da esposa de Jorge Lima.
Por trás da árvore amiga, a meiga voz de Rosita quebrou
o êxtase do pai que não via, com bons olhos, aquela amizade, cada dia mais
consolidada entre ela e seu paupérrimo amigo.
"Marquinho! Olha aqueles pintassilgos tecendo o
seu ninho. Como é linda a vida dos pássaros! Isto parece o paraíso terrestre.
Faltam-me maçãs para te dar."
O sr. Jorge não podia compreender a intenção pura da
filha. Sua maldade avolumou-se e, com brusca atitude, ordenou que o menino se
retirasse, exigindo, em seguida, a saída de seu pai da propriedade.
Dias depois, da soleira da porta de sua casa, ela viu
a pobre família desaparecer na curva do caminho.
Marquinho voltou a cabeça em despedida, levando a alma
cheia daquela terra, dos seus campos, dos passarinhos, das noites de lua e,
mais que tudo, da menina que o cativara.
Rosita chorou sozinha.
Três anos passaram-se.
Do município de Várzea-Alegre, onde residiam, Rosita e
seus genitores dirigiram-se ao Crato, em viagem de passeio.
Era um dia de domingo.
Saía ela da exibição matinal de um grande circo.
Fora, sentado em tosco banquinho, um pobre cego pedia
esmolas. Ao seu lado, um garotinho de dez anos olhava, com santa inveja, a
meninada feliz que se comprimia na saída do circo, derramando-se pela rua
abaixo.
"Mamãe, dá-me vinte cruzeiros para aquele
ceguinho."
A mulher atendeu à filha.
Estendendo a mãozinha, os olhos de Rosita cruzaram com
os olhinhos vivos do pequeno.
"Marquinho!"
"Rosita!"
Duas palavras apenas... um só instante...
A mão de Jorge Lima segurou a de Rosita e sumiram-se
na multidão. Ela olhou para trás cheia de compaixão. Sua mãe, somente, sentiu e entendeu aquela cena.
Foram-se os dias, os meses e os anos.
Morreu o pai de Rosita e também o de Marquinho.
O silêncio se fez, cada ano, mais profundo entre
aquelas almas distantes.
Onde estará Rosita?
Onde andará Marquinho?
Eram interrogações feitas aos céus, ao vento, aos
pássaros.
Seus pensamentos e olhares encontravam-se nas
estrelas, abraçavam-se nas dobras das nuvens e bailavam nos espaços.
Do pai Rosita herdara grande fortuna. Filha única,
nova e cheia de encantos, dedicou-se à educação das crianças, indo, em companhia
de sua mãe, para Fortaleza, onde instalou um colégio.
Em seus passeios, nas igrejas, nos cinemas, nos
ônibus, trens e aviões, seus olhos, inconformados, buscavam, em vão, os olhos
de Marcos.
Como seria possível encontrar, evoluído e em tais
circunstâncias, o filho de um indigente?
Dele jamais falara sua mãe.
Certa manhã, uma de suas internas, menina pobre,
fraturou o crânio e a medicina da Capital se declarou impotente para salvá-la.
Devidamente medicada para resistir à viagem, Rosita
voou, a jato, para São Paulo, onde lhe foi indicado um moderníssimo hospital
infantil.
O proprietário, renomado cirurgião que vinha
adquirindo fama em todo o sul do Brasil, havia estudado num colégio de
Salvador, revelando-se, desde cedo, portador de esmerada educação e
inteligência invulgar. Conquistou ele bolsas de estudo, fazendo cursos de
aperfeiçoamento na Alemanha, nos Estados Unidos e, finalmente, na Suíça.
Consagrou-se, de corpo e alma, ao tratamento dos
pequenos, ricos e pobres. Era assistido por dedicadas enfermeiras e abalizado
corpo médico.
Tornara-se milionário muitas vezes, porém sua riqueza
era mais das crianças que dele próprio.
O avião aterrou.
Rosita, ainda que preocupada com a menina, não
afastava os olhos dos transeuntes apressados, no desejo ardente de descobrir
alguém.
O automóvel chegou ao hospital e a criança foi levada,
em estado de coma, para a sala de operações.
Era urgente a intervenção.
O médico estava de rosto vendado e somente seus olhos
negros brilhavam nas duas pequenas aberturas.
Rosita esquecera tudo e agora fitava unicamente a
criança.
O médico olhou Rosita e baixou a vista. Ali estava uma
vida em perigo. Apenas perguntou: É sua filha? A senhora é casada?
"Não!" Foi a resposta de Rosita.
Os aparelhos foram-lhe sendo servidos à proporção que
continuava nos trabalhos de operação.
Depois...
"Resta alguma esperança", declarou o
cirurgião. Levem-na para o quarto.
A pequena foi conduzida e posta na cama. Todos se retiraram.
A menina estremeceu. A porta estava fechada.
Rosita abriu-a com precipitação, chocando-se com o
médico que, mais precipitado ainda, empurrou Rosita para dentro do quarto.
"Marcos!"
"Rosita!"
Havia procurado Marcos em todas as circunstâncias e em
todos os lugares. Nunca o esperara ali. Esquecera-se até de indagar o nome do
cirurgião.
Realmente, estava ali o seu querido Marcos que, sem
que ele nem Rosita soubessem, tivera os estudos custeados, em Salvador, pela viúva
do sr. Jorge Lima.
Um abraço e um beijo, que foram a soma de todos os não
realizados naquela longa ausência, abriram a porta de um futuro de felicidades,
dedicado ao lar e à vida dos seus pequenos semelhantes.
Enquanto se abraçavam, a criancinha, no leito, abriu
os olhos e sorriu.
Crato (CE), outubro de 1964
J. Siebra.