O
nosso carro ia rasgando o coração da noite na estrada sinuosa de Crato a Várzea
Alegre.
O terreno, sempre acidentado, era
atingido, em morros e recôncavos, pelo branco pincel da lua que, furando as
nuvens, desenhava, na mata, labirintos de sombra e de luz.
Apenas quebrava o silêncio o
estralejar da piçarra sacudida pelas rodas do automóvel.
O passar veloz das árvores e a fita
branca da estrada a sumir-se, em nossa frente, na multiplicidade das suas
curvas, traziam-me a mente a ideia da vida em seus três tempos, presente,
passado e futuro.
O passado então dominou-me
completamente, afogando-me num mergulho profundo.
E, entre os fatos de cada dia e de
todos os instantes, eu vi, bem coloridos, os da existência daquele que, em tal
momento, nos atraía, não para o convívio amigo de outrora, mas para um encontro
cheio de pranto.
Eu via aquele Jorge Siebra da minha
infância, cercado da garotada, nos prateados terreiros da Malhada, em noites de
lua cheia, a todos divertindo com as suas palestras plenas de graça e de
emoções.
O seu entusiasmo era contagiante,
viva e ardente a sua imaginação, boa e jovial a sua alma, abnegado e
desprendido o seu coração.
Esperava-se a sua chegada com
ansiedade. A sua presença era estimada, a sua partida assistida com tristeza e
a sua ausência era sentida com saudade.
Eu via aquele Jorge Siebra
diariamente, na sala de sua farmácia, atendendo dezenas de matutos,
recebendo-os com palavras de convívio e de conforto.
Eu via-o montado em sua burra carda,
vencendo as distâncias, atravessando os tabuleiros, galgando íngremes ladeiras,
sofrendo fome e sede, para salvar a vida dos desamparados, para curar os
meninos desvalidos, para consolar os necessitados.
Eu via-o dominando as trevas e os caminhos da serra
para ajudar a vir à luz as criancinhas, onde não podia chegar o médico nem a
mão abençoada da parteira.
Eu via-o arrancando do bolso muitas vezes seus últimos
tostões, ganhos com suor e sacrifício, para fazer caridade.
Eu via-o cercado de pobreza, sua maior amiga, em toda
aquela zona sertaneja, a todos fazendo benefício.
Eu via-o enfrentando a sanha dos seus inimigos,
indomável e intrépido, desafiando a fúria dos seus perseguidores, galopando
sozinho por sombrios e perigosos caminhos.
Eu via-o indomável pelo sofrimento, sempre o mesmo
homem, em todos os lugares e em todos os dias, amante dos pobres e bom pai de
família.
E perdido nestas divagações, vejo ao longe uma luz que
anuncia a nossa aproximação de Várzea Alegre.
A noite já ia na segunda metade e a cidade toda
dormia.
Apenas aquela casa estava aberta e quatro velas
bruxuleantes mostram estendido ali na sala, imóvel e sem vida, o corpo de Jorge
Siebra.
Aquele bom amigo estava sem a sua vivacidade.
As feridas dos presentes se reabriram e os soluços e
as lágrimas se multiplicaram.
Fitando-o senti que se havia feito um grande vazio no
sertão e que tamanha dor brotara na pobreza daquela região.
Quantos casos resolveu com os seus poucos
conhecimentos e quantas vidas salvou.
Como não teria sido muito mais avantajada a soma de
benefícios se tivesse podido fazer o curso de medicina.
Infelizmente aqueles que tem verdadeira vocação para
medicina são quase todos pobres e sempre gente dos sertões.
Jorge foi um dos muitos sacrificados que surgem por
este Brasil afora, abnegados, inteligentes e perscrutadores, que, como médicos,
muito fariam pelo povo, mas que vivem e morrem sem estudo somente porque os
nossos governos jamais facilitaram meios aos filhos dos sertões.
Apesar de tudo, foi o médico da região, sempre
procurado, sempre estimado, sempre respeitado.
A sua vida está gravada no coração do matuto e a sua
imagem ficou entronizada na alma de todo sertanejo daquela região, num rico
pedestal de reconhecimento e de saudade.
O seu nome será sempre pronunciado onde houver um
casebre ou uma casa grande, naquela zona.
Assisti ao seu sepultamento em meio de grande povo e,
logo depois, despedindo-me dos seus filhos e das suas irmãs ainda em pranto,
voltei pensando no quanto pode a medicina quando em mãos de um homem de boa
vontade, que sacrifica até a sua vida pela saúde do povo, no quanto pode
realizar um médico, verdadeiro sacerdote de tão nobre e bela profissão.
Olhando para trás, Várzea Alegre havia desaparecido na
volta do caminho e eu segui trazendo a saudade daquele que tantas vezes alegrou
os dias da minha infância.
Crato-CE, março de 1955
José Siebra
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